Começo por esclarecer, sem ambiguidades, que não considero V. Exa. o Presidente de todos os Portugueses. Essa é, com efeito, uma frase feita que todos sabemos, da direita à esquerda do espectro político, ser falsa e hipócrita. Do mesmo modo que assim pensaram os seus apoiantes, aquando da eleição do Dr. Mário Soares ou o Dr. Jorge Sampaio. De igual modo pensam os apoiantes de V. Exa. relativamente a José Sócrates, que estão muito longe de considerar como o Primeiro-Ministro de todos os Portugueses. Não vem daí nenhum mal ao mundo. São as contingências da própria democracia. Mas V. Exa. foi o Presidente eleito, do mesmo modo que José Sócrates o Primeiro-Ministro, e é com isso que ambas as partes têm de conviver.
Também não reconheço em V. Exa. qualidades técnicas, como economista, dignas de especial atenção. Não escreveu sobre a matéria qualquer obra digna de referência, não criou nem implementou qualquer teoria económica relevante. Não salvou Portugal de qualquer desastre económico. Criou-se sim, à sua volta, quando governou o País, uma aura sebastianista que parecia conduzir Portugal para a órbita dos países civilizados da Europa mas que, afinal, para além de obras como as auto-estradas ou o Centro Cultural de Belém - certamente importantes como componente do nosso progresso - se traduziram num quase zero absoluto quanto ao que é realmente essencial para os Portugueses: o progresso e a justiça social. Mas, graças ao manancial de fundos europeus daquela época e à relativa estabilidade da nossa débil economia, o seu consulado parece ter sido uma referência para toda a direita, órfã desde Sá Carneiro.
O problema foi quando V. Exa. decidiu concorrer à Presidência da República e… foi eleito!
É que, para esta função não basta ter dado aulas na faculdade e ter subido na vida a pulso como gosta de se gabar (e muitas vezes desconfio de tanta gente importante que “subiu a pulso” na vida). É necessário ter uma dimensão social que V. Exa. manifestamente não tem.
A tarefa de um Presidente da República não se pode resumir às decisões na solidão do seu gabinete, à convivência com a sua “entourage” de confiança, a visitas de cortesia a alguns países e às poses majestáticas de quem paira acima do vulgar dos seres humanos e se aproxima dos deuses, como deixou transpirar em frases “lapidares” como “nunca me engano e raramente tenho dúvidas” (frase que, para além de arrogante, é conceptualmente contraditória). Um Presidente da República que se preze não pode apenas visitar condomínios de luxo, tem que visitar os bairros e zonas problemáticas. Não pode dar apenas palestras no “American Clube”, tem que falar nas cantinas com os operários despedidos das fábricas. Não pode apenas aparecer nas clínicas de luxo e nos hospitais privados, tem conhecer os centros de saúde e os hospitais públicos. Não pode apenas apoiar a excelência dos resultados dos estabelecimentos de ensino privado - ao qual tem acesso os filhos de meia dúzia de privilegiados - e esquecer-se da escolas públicas, que se confrontam no dia-a-dia com o impacto dos grandes problemas sociais. Não pode inaugurar apenas complexos turísticos de luxo e ignorar os bairros de lata.
Ora, nada disto V. Exa. sabe ou quer fazer. Porque o seu mundo e as suas opções são outras. Por isso nunca poderia ser um grande Presidente.
V. Exa. está a atingir o limiar da sua carreira política, gere tabus e silêncios como ninguém. Como disse e bem Miguel Sousa Tavares, é uma espécie de farol de Alexandria da política - que aparenta controlar do alto do seu Olimpo - e que pretende passar a imagem intocável de nunca se meter em confusões, como acontece com os políticos que andam cá em baixo, no meio da barafunda.
O problema é quando V. Exa. “fala” e quando V.Exa. “age” (curiosamente, o mesmo problema de Manuela Ferreira Leite)!
Assim aconteceu primeiro, com o célebre episódio do estatuto dos Açores, que o fez interromper as férias para se dirigir propositadamente aos Portugueses, 99% dos quais não perceberam e continuam a não perceber patavina do que V. Exa. pretendia dizer! Das duas uma: ou somos todos estúpidos ou o dom de palavra não é, seguramente, o seu forte…
Assim prosseguiu depois com os vetos políticos “ao quilo” sobre os diplomas do Governo. Certamente que no legítimo direito do exercício do cargo, mas que, à velocidade com se sucederam cheirou a revanchismo que tresanda e, objectivamente, serviram “à merveille” para a campanha do seu partido (e não só...).
E culminou, enfim, com a sua intervenção de hoje que teve, honra lhe seja feita, o mérito de deixar toda a gente boquiaberta, mesmo os seus indefectíveis apoiantes!
Não é preciso entrar em detalhes sobre a análise destes 10 minutos da sua intervenção. Disso se encarregarão órgãos de informação, partidos políticos, politólogos, analistas, comentadores. Vai ser uma semana farta!
Deixe-me só que lhe diga, Sr. Presidente, como Português e como cidadão, o seguinte:
- Não me recordo, desde o 25 de Abril de 1974, de uma intervenção tão desastrosa, tão lamentável, tão inoportuna, tão tendenciosa, tão mal fundamentada e desestruturada por parte de nenhum Presidente da República!
- Da debilidade da argumentação, da inoportunidade da intervenção e até da mais pura das ignorâncias, teve de tudo um pouco.
Porquê?
1 - Do que estava essencialmente em causa, a hipótese (gravíssima) da existência de escutas telefónicas, V. Exa. não acrescentou nem provou rigorosamente nada. De onde se infere que, com ou sem o seu conhecimento, um ou vários dos seus colaboradores “encomendaram” uma notícia a um jornal com propósitos óbvios; uma espécie de jornalismo mercenário mais próprio do terceiro mundo, cujos meandros - inclusive o grau de responsabilidade do jornal “Público”- duvido muito que alguma vez se venham a esclarecer. E este é, precisamente, o ponto fundamental que V. Exa. deveria tentar averiguar, repondo a verdade e pedindo desculpas a quem de direito, se fosse caso disso.
2- Na atabalhoada argumentação que pretendeu desenvolver acabou por referir que hoje mesmo (!!!), isto é, meses e meses após o início do caso, peritos o tinham esclarecido que o sistema informático da Presidência tinha “falhas” (o que, para si, que nunca se engana, deve ter sido um desaforo)!
Entendamo-nos, Sr. Presidente, isto tem um nome: analfabetismo funcional. É que qualquer informático de vão de escada ou mesmo qualquer miúdo minimamente interessado no assunto sabe que, do Pentágono à Casa Branca ou ao Kremlin, passando pelas grandes Empresas, pela Microsoft, pelo Google, etc., não há sistemas infalíveis e há “hackers” (não confunda com ácaros, Sr. Presidente?) que se intrometem em qualquer deles. Ou seja, não há sistemas infalíveis (porque é que o seu havia de o ser?!). O que há é sistemas mais ou menos seguros…
V. Exa. não é obrigado a perceber de informática (esforce-se ao menos por disfarçar) e tem o direito de desconfiar de quem quer que seja, da mesma maneira que qualquer pessoa tem o direito de desconfiar de V. Exa., por muito que isso lhe custe (nada garante que o Governo não pense também que anda a ser espiado, por exemplo).
O problema é que a simples suspeita, sem qualquer elemento factual, não lhe confere o direito de lançar essa suspeita – por acção ou omissão - para a opinião pública, seja por si seja por interposta pessoa da sua confiança. Trata-se da Presidência da República, um órgão de soberania que tem que primar pela confiança, pela rectidão e pelo exemplo.
E, também do mesmo modo que pensa que não é crime um seu colaborador ter tal suspeita (justificando até, implicitamente, ser razoável “encomendar” uma notícia), também não é crime um elemento do PS pensar que houve assessores da Presidência a colaborar em programas de outros partidos. Toda a gente sabe que assim é, provavelmente em todos os quadrantes políticos - aliás tal hipótese parece-me que surgiu no próprio site do PSD e no semanário “Expresso”- e só V. Exa. é que parece ficar todo ofendido perante tal suposição…
3 - Para quem se arvora Presidente de todos os Portugueses, uma comunicação destas, sem a mínima sustentabilidade nem razoabilidade, quer pelo seu teor, quer pela oportunidade é - isso sim, inequivocamente – uma arrogante e intolerável intromissão no acto eleitoral, mais própria de um político de terceira categoria e que destrói, em definitivo, o mito da isenção cavaquista na presidência. Bastou a derrota inequívoca das suas cores para a máscara cair!
4 - O próximo governo vai ser indigitado brevemente. Se mais nada de significativo acontecer até lá, num País que parece mergulhado na loucura - e no qual o que ainda houve de mais puro foi a expressão clara do voto popular - José Sócrates deverá tomar posse. Não sei qual vai ser a sua atitude. Já provou ter capacidade para enfrentar as mais tremendas provações. Vai ter que negociar, parlamentar, assumir compromissos e acordos. Vai ter também que se preparar para o pior por parte dos seus opositores, como se continua a verificar. Mas talvez uma das mais duras provações seja a de ser obrigado a olhá-lo nos olhos, Sr. Presidente. Se fosse eu, virava-lhe a cara!
Porto, 30-09-2009
Guilherme Santos