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22 de outubro de 2009

Religião # 001

JOSÉ SARAMAGO E A IGREJA. E agora, José?

1 - Em 1989, o escritor britânico de origem indiana Ahmed Salman Rushdie, publica a obra “Versículos Satânicos”, que originou enorme controvérsia no mundo islâmico devido a, alegadamente, satirizar e ofender gravemente o profeta Mahound (antigo termo pejorativo para o profeta Maomé) e, de uma forma geral, o islamismo, do qual Rushdie é crítico confesso.

A reacção no mundo árabe não se fez esperar, com manifestações violentas e a “condenação à morte” do escritor por parte do Ayatollah Khomeini, no Irão, que na prática, determinaram o exílio forçado do escritor para parte incerta. A “sentença” viria, mais tarde, a ser retirada.

Esta inaceitável perseguição a Rushdie - independentemente do valor intrínseco dos “Versículos Satânicos” como obra literária - foi de imediato (e bem) objecto de repulsa generalizada no Ocidente, gerando veemente reacção e sendo considerada como uma inaceitável ameaça à liberdade de expressão, tão cara ao chamado mundo civilizado. E o escritor - que praticamente até então ninguém conhecia - foi de imediato elevado à condição de ícone da superioridade moral do Ocidente em relação à “barbárie” do mundo árabe.

2 - Em 1998 é atribuido pela Academia Sueca ao escritor português José Saramago o Prémio Nobel da Literatura.

Conhecido pelas suas posições de esquerda (é militante do PCP) e pela crítica generalizada à religião (às religiões) e, sobretudo, às posições da Igreja Católica, é imediatamente ostracizado, quer por esta quer, genericamente, por amplos sectores da direita, que de imediato se empenham em denegri-lo e diminuir-lhe os méritos como escritor.

Em Portugal, as tensões entre Saramago e a Igreja Católica tinham-se exacerbado com a publicação do livro "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", motivo de violentas críticas de sectores religiosos conservadores, que consideraram a obra uma ofensa à religião.

Um obscuro e imbecil sub-secretário de estado da cultura de então, de seu nome Sousa Lara - com o apoio expresso do então primeiro-ministro Cavaco Silva - veta o livro «O Evangelho Segundo Jesus Cristo» a uma candidatura a um prémio literário, numa inadmissível atitude censória de cariz proto-fascista, garantindo mais tarde, numa entrevista, que voltaria a fazê-lo!

Logo após a atribuição do Prémio Nobel a Saramago, o Vaticano repudia a atribuição da honraria a um "comunista inveterado"!

3 - Estes dois episódios, aparentemente sem qualquer relação entre si, demonstram claramente a ambivalência hipócrita do conceito de “liberdade de expressão” para determinados sectores da sociedade.

O que, para o Ocidente - ou mais concretamente para Portugal - torna Rushdie um herói (por ousar criticar uma religião detestada, a “religião deles”) torna Saramago um facínora (por ousar criticar uma religião venerada, a “nossa religião”).

4 - O crítico norte-americano Harold Bloom, no seu livro “Genius: A Mosaic of One Hundred Exemplary Creative Minds” considera José Saramago "o mais talentoso romancista vivo da actualidade, referindo-o como "o Mestre" e "um dos últimos titãs de um género literário que está a desaparecer".

Saramago escreveu até hoje cerca de 36 obras, publicadas em Espanha (Castelhano e Catalão), França, Itália, Reino Unido, Holanda, Alemanha, Grécia, Brasil, Bulgária, Polónia, Cuba, União Soviética (Russo), Checoslováquia (Checo e Eslovaco), Dinamarca, Israel, Noruega, Roménia, Suécia, Finlândia, Estados Unidos, Japão, Hungria, Suíça, Argentina, Colômbia, México. E, obviamente, em Portugal.

O seu romance "Memorial do Convento" foi adaptado a Ópera pelo compositor italiano Azio Corghi, com o título "Blimunda".

A peça de teatro "In Nomine Dei" foi adaptada a Ópera por Azio Corghi, com o título "Divara".

Obras como “Ensaio sobre a Cegueira” são um prodígio de criatividade e inovação na literatura de qualquer país civilizado.

Elevou-se ao mais alto patamar da literatura mundial, pelo seu próprio pulso.

5 - José Saramago é um homem polémico e controverso. Mas tem direito a sê-lo (muito mais do que as centenas de idiotas medíocres que por aí proliferam com direito a todo o espaço de opinião possível) porque esteve sempre na primeira linha da defesa dos valores fundamentais. É um homem de causas, mas um criador brilhante e um homem livre, a quem se devem tolerar eventuais excessos de linguagem e mesmo posições erradas, precisamente por ser um homem de excepção.

6 - À Igreja Católica sobra muito pouco espaço para dar lições de ética e elevação cívica a quem quer que seja.

É hoje uma instituição relativamente contida porque a evolução da sociedade assim lho impôs, mas continua inequivocamente ao lado dos poderosos.

Assobiou para o lado na invasão do Iraque. Fechou os olhos a Guantánamo.

Ignorou Timor (com excepção do bispo Ximenes Belo no terreno).

Aceitou tacitamente e colaborou com regimes tenebrosos como o nazismo na Alemanha, o fascismo em Itália, Espanha e Portugal ou as ditaduras sangrentas da revolta militar de 64 (Brasil), de Somoza (Nicarágua), de Baptista (Cuba), de Vicente Gomez e Perez Gimenez (Venezuela), de Trujillo (República Dominicana), de Videla (Argentina), de Pinochet (Chile), etc. etc. etc.

A Santa Inquisição, criada pela Igreja Católica e posteriormente associada ao poder régio, condenou à morte na fogueira milhares de pessoas por mero delito de opinião.

Durante as Cruzadas, em nome da difusão da fé cristã, chacinaram-se povos e arrasaram-se civilizações.

A Idade Média, sob a poderosa influência clerical, foi um dos mais sinistros períodos da História.

Ao longo dos anos foram utilizados métodos de tortura, ultraje, escravidão e selvajaria que constituiram alguns das páginas mais negras da humanidade.

A cegueira religiosa impediu sistematicamente a discussão livre e manteve sempre, sobre o pensamento de quem se afastasse dos seus dogmas, regimes de censura férreos, autos de fé e perseguições.

Figuras determinantes do pensamento universal como Giordano Bruno, Kepler, Galileu, Leonardo da Vinci, foram perseguidos e excomungados.

Há hoje por todo o mundo centenas de casos conhecidos de pedofilia e violações por parte de representantes da igreja, e tantos outros abafados ou sonegados à opinião pública a troco de compensações monetárias.

O Vaticano, um estado minúsculo, sem qualquer actividade industrial ou recursos naturais, acumula um espólio incomensurável e é um dos países mais ricos do Mundo.

E é esta mesma Igreja, que sempre se arrogou o direito divino de ser inquestionável e inquestionada, que durante séculos trucidou impiedosamente todos os sinais de pensamento contrários ao seu, que se arvora agora cinicamente em vítima ofendida por alguém ousar vir a publico confrontá-la com as suas próprias contradições!

7 - A Bíblia é o livro sagrado da religião católica que seguramente mais de 90% dos católicos nunca leu na íntegra. Dos restantes 10% (a maior parte dos quais a hierarquia católica com o seu cortejo de bispos, arcebispos, sacerdotes, etc.) contam-se pelos dedos os que a leram com o mínimo de rigor ou de espírito analítico ou sem fanatismos exacerbados.

É um livro que domina a partir do exterior o pensamento e a vida de milhões de católicos.

E, segundo testemunhos de valor incontestado, como, por exemplo, o de Bertrand Russell (autor de “Porque não sou cristão”), a Bíblia é uma obra recheada de imprecisões, episódios de vingança injustificada, violência e sectarismo. Que, sobretudo, nos revelam um Deus muito longe de ser omnipotente, omnisciente e de infinita bondade mas um Deus vingativo, rancoroso e imperfeito.

O Homem, na idade da razão, tem o direito (e o dever) de questionar, equacionar, interrogar.

A sociedade da informação coloca ao seu alcance uma infinidade de meios para formatar esse conhecimento e tomar decisões baseadas na inteligência, no espírito crítico e no sentido cívico.

Ninguém tem o direito de nos obrigar a aceitar, por mero imperativo de "fé" (conceito que ninguém consegue concretamente definir...), aquilo que nos levanta interrogações. Como ninguém tem, obviamente, o direito de impor o contrário.

Só um País doente pode fazer das opiniões de um dos seus maiores vultos um auto de fé e não um referencial de reflexão e de debate.

Saramago - que esteve há pouco no limiar da morte – aprendeu a respeitá-la e adquiriu ritmos próprios para se exprimir e para lutar pelos seus ideais e contra os seus fantasmas. Como ser inteligente que é, percebeu que a beleza suprema do limite do tempo caminha lado a lado com a sua escassez. Percebeu, enfim que não tem espaço suficiente para dizer e/ou escrever tudo o que (ainda) o oprime e inquieta. E, como tal, despe-se de subtilezas.

Tem – como cidadão e como homem do pensamento – o pleno direito de se exprimir como se exprimiu e como se quiser exprimir.

Como qualquer de nós, afinal!

Porto, 22-10-2009



3 comentários:

  1. Ora aí está um texto muito fixe para eu mandar a muito boa gente que eu conheço!
    Apenas tenho a apontar um esquecimento: convem referir que os crentes nas religiões monoteístas que acreditam num só Deus, paz no mundo aos homens de boa vontade, não conseguem entender-se uns com os outros! E eu, que, como tu dizes, tenho o direito (e o dever) de questionar, equacionar, interrogar, julgo ser essa uma das grandes questões: como hão os ateus de se entender com os religiosos se eles próprios não se entendem uns com os outros? Enfim...
    Como sempre, um excelente texto, corroborado por provas irrefutátveis, claras e lógicas que tanto faltam aos religiosos. Bom trabalho!

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  2. Pois...pois...sempre em cima do acontecimento!
    Concordo contigo e com o comentário da minha maninha...os "maus costumes" vão para além da biblia (infelizmente).
    O Saramago é um senhor e não se limita a dizer que o livro sagrado é uma "coisa e tal".
    Very good!!!

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  3. Leminho, Li-te! Finalmente!!! E sabes? Para já, concordo em absoluto contigo e depois lá vem aquele orgulhozinho por conhecer o autor do artigo. Os meus parabéns e obrigada por aumentares os meus parcos conhecimentos.

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