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15 de novembro de 2009

Conto # 001



( Do livro, não publicado,

"CONTOS & DITOS" )



OBSESSÃO

Absorvido pelo seu frenético quotidiano, a princípio G. mal dera por ela.

A força desprendida por aquela imagem ia-se-lhe insinuando, de início apenas pela força da continuidade e do hábito.

Depois, gradualmente, com o passar do tempo, começou a observar-lhe, com curiosidade crescente, o ritmo e a cadência do andar: ora compassado e lento, ora brusco e impulsivo, como se da presença dela logo se fizesse ausência. Por vezes quedava-se também numa quase total imobilidade - pensamento suspenso sabe-se lá em quê - por intermináveis momentos.

Aprendeu a saborear-lhe aquela postura silenciosa, enigmática, porventura austera. Nunca lhe escutara uma só palavra, jamais lhe vislumbrou uma emoção.

Curiosamente, ela andava só. Sempre só.

Destacava do meio envolvente a sua silhueta peculiar, como figura a emergir dum alto-relevo. Jamais pareciam afectá-la os mais inusitados ruídos, os inesperados fluxos luminosos em que a cidade é pródiga, susceptíveis de induzir, pelo menos, a instintivos movimentos condicionados de protecção.

G. foi requintando, apurando, detalhando a observação, captando sinais, detalhes, pormenores, hábitos. Notou que nas suas prolongadas deambulações, por exemplo, ela privilegiava, por vezes, os espaços amplos, claros, luminosos. Circunstância que, de facto, lhe favorecia o destaque do corpo em relação ao espaço circundante, demarcando-a, num curioso efeito contrastante, como num jogo de claro-escuro fotográfica e premeditadamente conduzido.

Sucederam-se os dias, as semanas, os meses.

A singularidade daquela figura passou a monopolizar, primeiro alguns depois muitos mais tarde todos, os seus parcos momentos de lazer, subtraindo-lhe os prazeres da leitura e das conversas, minando-lhe o descanso.

Da curiosidade passou à inquietude, da inquietude à obsessão.

Por intermináveis períodos de tempo, a imagem dela, ora apenas esboçada, ora minuciosamente detalhada, devassava-lhe cérebro e alma. Estirado no leito, após horas de fatigantes jornadas de trabalho, complexos negócios, entrevistas, reuniões, almoços, conferências, deixou-se devorar pelo ócio, depois pela insónia.

Tão obsessiva observação passou a alertar-lhe os sentidos para todas as minúcias.

Os membros, por exemplo. Achava-os, na verdade, desproporcionados em relação ao equilíbrio geral do corpo. Excessivamente longilíneos, demasiado marcados. Mas apesar disso - e malgré tout! - a apreciação resultava globalmente positiva e aliciante, construindo um conjunto anatomicamente sedutor, por uma daquelas razões intuitivas que parecem afastadas de qualquer princípio lógico.

Ocorreu então a G. que era tempo de ir procurando uma aproximação, uma qualquer tentativa de intimidade, algo que se assemelhasse a um esboço de diálogo, nem que de silêncios feito.

De tímidas tentativas iniciais, passou a perseguir novos objectivos, alguns avanços mais ousados, graduais, estudados.

"Que diabo!", pensava! Conheciam-se o suficiente. Estava seguro que ela já o havia notado. Era impossível que não tivesse dado por ele.

Um dia, cautelosamente, muito cautelosamente, G. redobrou de coragem. Chegou-se perto, muito perto mesmo, tão perto que, se quisesse, decerto lhe tocaria. Jamais a física distância entre ambos fora uma grandeza tão desprezível. Ao mínimo avanço, tocar-se-iam.

(Decorrera, entretanto, tanto tempo. Esquecera-se mesmo de como tudo havia começado).

Foi um momento único e transcendente naquela relação singular.

Estranhamente, porém, sentiu com a proximidade uma inexplicável, quase incontornável e instintiva repulsa, visceral e orgânica, que parecia dimanar dos tempos, como se fosse inerente à condição de qualquer homem experimentar tão incómoda sensação de desconforto - dir-se-ia que epidérmica - em circunstâncias idênticas. Não encontrou, no momento, qualquer justificação plausível: o mínimo odor desagradável, uma qualquer inconveniência de comportamento, uma expressão minimamente desagradável, uma palavra proferida. Nada.

Indiferente a este conflito de sentimentos, ela acomodou-se na sua habitual quietude, expectante, porventura algo surpresa, por intermináveis momentos.

No dia seguinte, porém, não apareceu.

Nem um dia após. Nem outro ainda.

G. inquietou-se com a súbita ideia de não mais voltar a vê-la. Preocupava-o, sobretudo, a possibilidade de ela ter considerado inoportuna, inconveniente ou mesmo intempestiva ou prematura aquela sua iniciativa de despoletar uma aproximação. Ou de ela ter intuído - graças aos proverbiais dotes femininos - a inexplicável sensação de desagrado que lhe havia provocado (da qual, aliás, em boa verdade, já mal se lembrava...).

As noites passaram a não ter para ele a mesma relevância, a perder significado, contornos, importância. Os dias, na absorvente probabilidade sempre admitida de um feliz reencontro, começaram a afigurar-se-lhe intermináveis, fastidiosos, quantas vezes mesmo, intoleráveis. No trabalho, perdeu a sua proverbial concentração e eficiência. Tornou-se de uma convivência quezilenta e desagradável.

E começava a habituar-se a um definitivo vazio emocional... quando ela reapareceu!

Ah! Como o tempo tinha a particularidade de dar subtil detalhe e colorido às coisas, relevar os pormenores...

(Curiosamente, jamais ocorrera a G. a mais ténue tendência de aproximação sexual. Comprazia-se numa atenção lúdica, quase clínica, ainda que por vezes algo física num sentido meramente táctil).

Um dia ocorreu-lhe: e os olhos? Sim. Da próxima vez, haveria de tentar ver-lhe de perto os olhos! Meros apêndices funcionais, parte integrante dos nossos sentidos, que tantos sentimentos descontrolados despertam, por inadmissível que parecesse, nunca G. lhos havia observado. Nem mesmo lhe chegara a distinguir a tonalidade. Se, como dizem, são o espelho da alma, que melhor maneira de tentar descobrir algo mais, que rios de sentimentos percorreriam o pensamento daquela criatura na aparência inacessível, indecifrável?

Tentou, então, com redobrada e estudada decisão, observá-los. Mas, num repente, com aquele desnorteante e imprevisto movimento que por vezes a caracterizava, ela evitou-o, habilmente, desaparecendo de modo tão inusitado que G. nem tempo teve de lhe descortinar o destino.

Sucederam-se então as tentativas. Dia após dia. Sempre e sempre infrutíferas. Sem que descobrisse sequer, mau grado os múltiplos esforços, a tom daquele olhar fugidio e esquivo.

Desesperado, G. tentou esquecê-la.

Mas sempre ela reaparecia, usufrutuária do seu destino e da sua vontade. Fizesse sol ou chuva. Calor ou frio. Implacavelmente, quase à mesma hora. E sempre a escapar-se-lhe ao menor indício de uma aproximação mais temerária.

Insinuou-se-lhe então uma dúvida: seria “ela”... feminino ou masculino? Seria essa a razão oculta daquele jogo de tão obstinada ambiguidade. Sempre a supusera “ela”, mas quem lhe garantia de que não se tratava de um grosseiro erro de apreciação, fruto desajustado de uma perspectiva demasiado apaixonada das coisas e dos acontecimentos?

Ou então, porque não um daqueles artifícios hábeis de cache-cache, simples prazer da diversão pela diversão, do gozo pelo gozo, em que o sexo feminino tantas vezes é exímio?

De há muito G. afastara a hipótese de partilhar o seu segredo com alguém - um amigo íntimo, por exemplo. Algo lhe dizia que, por maior que fosse o grau de compreensão, se riria na própria cara. Para além do mais, criara à volta do caso uma tão profunda auréola de intimidade que entendia só a ele competir solucioná-lo.

G. tomou-se de um intolerável desprezo por si próprio. Sentia-se impotente para tornear aquela fase de lastimável fraqueza da sua existência, após tantos anos de sobranceira agilidade no tratamento das sinuosidades e imprevistos da vida.

Então, pouco a pouco, primeiro como um pensamento fugaz, depois como ideia progressivamente amadurecida, clara, premeditada, a decisão cresceu, ganhou forma e impôs -se, definitiva: Matá-la-ia!

Quanto mais se debatia com a ideia, menos descortinava alternativa mais digna, saída mais honrosa.

Foram-se-lhe delineando, refinando, pormenorizando os detalhes.

O lugar dos habituais encontros pareceu-lhe perfeitamente adequado aos propósitos: silencioso - como ela -, misterioso e íntimo - como ela. Propício a que só um e outro, fossem intérpretes e testemunhas daquele derradeiro e único acto terminal.

Eventuais minúcias, não o preocuparam. Estava tão certo da improbabilidade de qualquer gesto inesperado de resistência, tão seguro da sua enorme vantagem física, que nem cuidou demasiado de pormenores. A seu tempo se veria.

Apenas a morte dela, independentemente da forma como iria processar-se, o absorvia.

A noite era tempestuosa. Uma noite em que as almas pareciam todas recolhidas, diabolicamente predestinada para o crime. Os ventos uivavam. Horrendos clarões rasgavam os céus de lés-a-lés, iluminando a paisagem nocturna por instantes, num gigantesco cenário cinematográfico, digno de um filme expressionista de Murnau.

Ela chegou. Vinda, como sempre, não se sabe de onde.

Percorreu, num movimento de compassada e estudada lentidão, grande parte da grande superfície branca, numa espécie de teatralidade estudada, plena de dignidade, como se caminhasse ao encontro de toda a trágica solenidade daquele momento único e irrepetível.

Depois parou, por longos momentos, que pareceram infindáveis, muito perto de G.

Pela primeira vez pareceu fitá-lo, com inusitado interesse, com inesperada e quase insuportável intensidade…

A vida de ambos suspendeu-se, imobilizou-se numa espécie de tempo adiado.

Inesperadamente, então, tão imprevistamente como cada momento que se sucedia daquela noite, ela vacilou, perdeu a habitual segurança e o equilíbrio.

Esboçou um instintivo, derradeiro gesto de recuperação - dir-se-ia que deliberadamente não assumido - mas caiu-lhe na frente, a centímetros, inteiramente indefesa.

G. olhou-a. Pareceu por momentos apiedado daquela inesperada e espantosa fragilidade, daquela involuntária atitude de subjugo e dependência.

Mas foi tão só um lapso de tempo reflexivo, entre dois sentimentos contraditórios. Fraqueza momentânea, dir-se-ia...

Com inusitada precisão comprimiu, num gesto decidido, breve e seco, ambas as partes do livro aberto ainda nas mesmas páginas.

Fechou-o.

E matou a aranha.


Porto 1985-Junho

3 comentários:

  1. Escusado dizer que é o conto com o final mais inesperado que conheço...
    Descreve mravilhosamente quais podem ser os frutos das divagações da mente humana e como pode existir uma relação (quase) amorosa entre um homem e um(a) aranha.
    Se bem que devo dizer, acho que este G. levou a coisa um pouco ao extremo. Não sei se deixava que um aranha interferisse com a minha concentração no emprego... Enfim, há gajos malucos!
    E já agora G. não sabia que matar as aranhas dá azar no dinheiro? (explica muita coisa, heim?)

    Bjos grandes, meu "best-seller autor"!

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  2. Como é que meia duzia de letras (e "killou" a "outra") mudam o rumo aos acontecimentos????
    Foram duzentas e tal linhas de publicidade enganosa....grrrrrrrrrrrrrrrrrr
    Foi giro ler o texto pela segunda vez... numa outra prespectiva... mais a puxar ao "biológico", digamos.

    Muito interessante e bem escrito... não fosse do meu paizinho ;)

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  3. Estivesse atento o Roman Polanski e teríamos um filme de terror de prender um incauto à cadeira. Sim senhor, grande argumento. Quanta imaginação! Foi óptimo reler.

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